Aprendendo Envelhecer _ Lábios de chocolate

Autor(a):

Esta crônica linda é de um amigo de infância Antonio Carlos Seild , nos prédios da Rua Farani, 61, Botafogo, projetados pelos arquitetos MMM Roberto, discípulos de Niemeyer. O jornalista e escritor tem livros publicados e trabalhou na sede da BBC, em Londres. Amo o que ele escreve mas os capítulos que incluem nossa infância naqueles  prédios majestosos, são queridos demais. Hoje,ele é o mestre que nos ensina. Muito obrigada, Antonio.

Edifício Julio de Barros Barreto, nome dos prédios.

Gosto de ouvir música alta quando viajo sozinho ao volante. Sinto-me nostálgico. Na Dutra, a caminho do Rio em alta velocidade, ouço, no som do Audi, a voz rouca do escocês nascido no norte de Londres, cantando seu grande sucesso:

She sits alone waiting for suggestions
He’s so nervous avoiding all the questions
His lips are dry, her heart is gently pounding
Don’t you just know exactly what they’re thinking?

Devaneio. Ia agora para o novo colégio no Catete de bonde. As precoces emoções do menino de calças curtas e imaginação fértil ficaram na calçada da Praia de Botafogo. Cheiro de maresia. Dava para ver os barquinhos de aparência frágil e os nababescos iates prontos para singrar as águas da Baía de Guanabara, com o Pão de Açúcar ao fundo – um dos mais belos e famosos cartões postais do Rio de Janeiro.

Andávamos no mesmo passo, de cada lado e de mãos dadas com nossos Anjos da Guarda, nas caminhadas de ida para a Escola Pública Alberto Barth e de volta para casa no 61; quatro quarteirões, ostentávamos felizes o primeiro uniforme – ela de saia azul na altura do joelho…  blusa branca com as letras EP bordadas no bolso à esquerda, meias soquetes brancas, sapatos pretos; uma graça!

Rod Stewart vai em frente:

If you want my body and d’you think I’m sexy?
Come on sugar let me know
If you really need me just reach out and touch me
Come on honey tell me so

Sozinho, são essas coisas que vou pensando; um momento em que, não se sabe por que, conforme já disse o bom Maria, vêm-nos inesperados pensamentos da meninice. Quão ligeira é a infância! Vita brevis.

De esguelha, com timidez, procurava, com olhares furtivos e sorrisos dissimulados, aqueles olhos vívidos de uma menina em flor, e aquela expressão facial de alegria nos lábios rosados. Eram nossos anos iniciais nesta vida, desfrutados ao lado de muitas outras crianças daquela geração no 61…

A voz rouca é sensual:

If you really need me just reach out and touch me;
Come on sugar let me know If you want my body and d’you think I’m sexy?

Obra-prima dos arquitetos Marcelo, Mauricio e Milton Roberto – irmãos também criadores de dois símbolos do Rio, o Aeroporto Santos Dumont e o prédio da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) – o 61 é o Edifício Júlio de Barros Barreto, uma raridade arquitetônica, inaugurado em 1951, construído para segurados do IPASE (Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado); entre eles meu pai, o médico e jornalista Fernando Martin Seidl, que, em suaves prestações, sem correção monetária, em 30 anos, deu um teto para a nossa amada Maria Stella, meu irmão e eu, amparando também, filialmente,  seus idosos e enfermos pais.

Situado no alto de uma pequena colina de frente para a Enseada de Botafogo, foi projetado com base na posição do sol e na direção dos ventos, resultando na temperatura interna amena em seus 80 apartamentos duplex, com lindas vistas de suas varandas voltadas para os morros do Pão de Açúcar e da Urca do outro lado da Baía de Guanabara.

O 61 manteve o número, mas passou da rua Farani para a rua Fernando Ferrari, sem sair do lugar – em nome do progresso urbano, perdeu seu fronteiriço bucólico jardim, com um espelho d’água em dois planos, canteiros com flores multicoloridas, árvores e muitas plantas ornamentais, uma obra de arte com a chancela do genial Roberto Burle Marx (1909-1994). O projeto foi elogiado até por Le Corbusier.

Apesar de protestos veementes, súplicas dos arquitetos e moradores, não teve jeito. O jardim foi destruído para abrir passagem para o tráfego entre as zonas Sul e Norte pelo recém-inaugurado Túnel Santa Barbara.

Enquanto as tratativas para o tombamento do jardim continuavam nos gabinetes e tribunais, certa manhã acordamos com o barulho infernal de escavadeiras e tratores demolindo brutalmente a área verde criada pelo pioneiro do paisagismo modernista no Brasil. Assistimos a vitória do asfalto sobre a arte com olhos marejados, perplexos, e um sentimento de impotência e revolta. Palavra que foi assim.

Como dizia algumas linhas atrás, o projeto inovador da MMM Roberto mantinha uma atmosfera aprazível nos apartamentos. Mas, se amena era a temperatura interna, muito quentes eram os ânimos daqueles dias quase-inocentes da pré-adolescência. Nós fomos a primeira geração do 61, meninos levados e meninas lindas, irmãos e irmãs, primos e primas, que se divertia ao ar livre, sem medo do futuro, nos parquinhos, nos quintais, nas pracinhas e no jardim, em meio a espécies vegetais trazidas de biomas brasileiros, uma característica das áreas verdes de Burle Marx.

As brincadeiras prediletas eram pular corda, jogar bola, amarelinha, queimada, pega-pega, esconde-esconde, bolinha de gude, telefone sem fio, carniça, passar anel… e a grande atração, sempre proposta pelas meninas pré-púberes, mais idílicas que os meninos, era o jogo de olhares gulosos chamado de pera, uva, maçã ou salada mista – a aurora de hormônios em faces ruborizadas e corações palpitantes…

E o anglo-escocês, na vitrola do carro, está no mesmo ritmo…

His heart’s beating like a drum
‘Cos at last he’s got this girl home
Relax baby now we are alone

Naquele tempo, a internet e o Vale do Silício, com suas engenhocas eletrônicas, play stations, smartphones, e as mídias sociais estavam muito longe da nossa imaginação… A nossa interação social era feita com olhos curiosos face a face e mãos nas mãos. Brincávamos à antiga, e estudávamos em busca de nossos sonhos. Vimos, porém, assustados, os tanques militares subindo nossa rua em direção ao sitiado Palácio da Guanabara, passamos pelos anos de chumbo da ditadura – alguns amigos e parentes foram torturados e executados, outros sobreviveram com sequelas dos estilhaços do golpe militar e da mordaça do AI5. Houve como acontece nas melhores famílias de classe média, coisas boas, coisas ruins, sorrisos e lágrimas, altas e baixas, exaltações e decepções, euforia e depressão, modas e chinfras. Houve namoros, noivados… muitos se casaram e se mudaram.

Fizemos faculdade, nos tornamos médicos, advogados, jornalistas, economistas, administradores, professores… A vida nos levou a nossos destinos, alguns nos deixaram precocemente, e foram morar no céu.

Mas, quando penso nos anos dourados no 61, a primeira lembrança que vem à minha mente é uma cena na calçada da Praia de Botafogo, nunca esquecida. Um dia, perdi o direito ao picolé Chicabon no caminho de volta – uma didática reprimenda materna pelos dez minutos sem saída por tagarelar durante as aulas.

Naquele dia, somente ela ganhou o sorvete mais desejado da carrocinha amarela cheia de gulodices – um Shangri-la para as crianças. Lembro-me, embevecido, das palavras inesquecíveis ditas pela sincera linguagem dos olhos, lembro-me da expressão de solidariedade daqueles olhos vivos, agora tristes de pena, no belo rosto daquela da menina-mulher, com os lábios lambuzados de chocolate.

Ainda tenho pela frente algumas retas curvilíneas a percorrer nesta estrada da vida, com mais devaneios a tomar conta dessa mente incorrigivelmente sonhadora…

Enquanto isso, Rod Stewart repete o refrão:

Sugar let me know If you want my body and d’you think I’m sexy?
If you really need me just reach out and touch me
Come on honey tell me so…

Antonio Carlos Seild

PS: Outros amigos e amigas que moraram no F.61 e cresceram com a gente : Fernando Seild, Zelia Prado, Graca Ivo, Ana Maria Ramalho, Bel Monteiro, Rodrigo Cabral de Melo, Inez Cabral de Melo, minhas irmãs mais novas Beth e Gracinha Pereira Jorge, Miriam de Sousa  Dantas e Luiz  Sotomayor. 

Thereza Christina Pereira Jorge

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *