Digitalização da sociedade dificulta acesso de idosos a planos de saúde, a bancos e tudo mais

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Beneficiários mais velhos têm encontrado dificuldade em usar sozinhos canais de atendimento em smartphones e apps
                         Sônia, de 81 anos, teve a ajuda do neto Erick para marcar exame

Beneficiários têm dificuldade para usar canais de atendimento em smartphones e apps.

Idosos têm encontrado dificuldades em acessar sozinhos os canais de atendimento dos planos de saúde. A digitalização desses serviços já estava em curso e foi intensificada durante o período de isolamento da pandemia de covid-19. Essa nova realidade, no entanto, não dialoga com o nível de letramento digital de todas as pessoas que têm acima de 60 anos de idade, parcela da população que é grande consumidora dos serviços de saúde.

De acordo com dados do Panorama dos Idosos Beneficiários de Planos de Saúde, do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), no período entre 2002 e 2022, a quantidade de pessoas idosas que possuem contratos ativos em operadoras de plano de saúde dobrou, passando de 3,2 milhões para 7 milhões.

Se lá atrás bastava uma ligação telefônica para agendar exames e consultas, agora os beneficiários precisam entrar em aplicativos e chatbots de WhatsApp (ou seja, a interação inicial ocorre com um robô) para obter esses serviços. O avanço da tecnologia pode ter facilitado a vida de muitos, mas se tornou um problema para os consumidores que têm dificuldades em usar smartphones e aplicativos – e não é pouca gente. Uma pesquisa conduzida pelo Sesc São Paulo e pela Fundação Perseu Abramo em 2020 revelou que os idosos se sentem excluídos do mundo digital.

Na pesquisa, que ouviu mais de 2,3 mil brasileiros com mais de 60 anos de idade, foi identificado um aumento na parcela que afirma ter conhecimento sobre o termo “internet” – saltou de 63%, em 2006, para 81%, em 2020. Apesar disso, somente 19% dos entrevistados relataram usar a plataforma. Ainda de acordo com o levantamento, 72% dos participantes nunca acessaram um aplicativo e 62% nunca entraram nas redes sociais.

EPOPEIA DIGITAL. A aposentada Sônia Moreira, de 81 anos, faz parte dessa significativa fatia que não tem familiaridade com o mundo virtual – e, por isso, encontrou obstáculos ao utilizar serviços de saúde. Desde 2022, ela é titular de um plano voltado exclusivamente para pessoas acima de 50 anos e, em janeiro, caiu e fraturou o pulso. Sônia recebeu os primeiros cuidados em um hospital particular fora da rede conveniada da operadora, mas, um mês depois, precisou ir ao centro médico do seu convênio para solicitar um raio X da fratura.

Seu neto, Erick Maués, de 29 anos, que a acompanhou, conta que ela não foi atendida assim que chegou porque receberam a informação de que deveriam marcar o exame pelo WhatsApp e o agendamento não poderia ocorrer presencialmente. “Enquanto eu conversava com a equipe, tentava o agendamento no chatbot, e ele não respondia. Consegui falar com o médico, expliquei toda a situação e fizemos o raio X naquele dia. Mas só por conta da minha insistência”, afirma o neto da aposentada.

O resultado do exame mostrou necessidade de uma cirurgia, pois o processo de cicatrização não estava acontecendo de forma correta. Mais uma vez, foi Erick quem precisou tomar à frente e auxiliar na marcação do procedimento, já que isso precisava acontecer via chatbot. Mas até o jovem teve dificuldade. “Tentei agendar, mas só tinha vaga para o mês seguinte. Como explico a emergência da situação para um robô?”, indaga.

A cirurgia foi realizada dois dias depois de Sônia ter sido levada ao pronto atendimento do hospital da rede, onde os médicos constataram a urgência do procedimento. Mas a epopeia tecnológica não terminou. O agendamento das dez sessões de fisioterapia para a recuperação completa do pulso também precisava acontecer pelo sistema remoto. Depois de uma manhã de tentativas, a filha da beneficiária conseguiu resolver a situação.

“Apesar do serviço ser voltado para idosos, o atendimento é virtual e minha avó não está acostumada com isso. É ela quem paga e utiliza o plano, mas depende de mim e da minha mãe para poder fazer os agendamentos”, diz Erick, o neto.

O funcionário público Adalmir de Castro, de 72 anos, está lidando com percalços parecidos para fazer uma ressonância magnética da próstata por meio da Pessoal Saúde, seu convênio. Depois de uma consulta com o urologista no começo de julho, o médico solicitou o exame, que só pode ser realizado depois que o paciente apresentar a justificativa médica sobre a necessidade do procedimento, considerado de alta complexidade. Só que o documento deve ser enviado em formato de PDF por meio da opção “fale conosco” do aplicativo.

“Vou ter de ir até uma lan house e procurar alguém para fazer isso para mim, porque não tenho computador em casa. Se pudesse entregar esse documento pessoalmente, talvez fosse mais rápido”, afirma o funcionário público.

GARANTIAS. A advogada Marina Paullelli, do Programa de Saúde do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), explica que o idoso está amparado, de forma ampla, tanto pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), que também se aplica aos planos de saúde, quanto pelo Estatuto do Idoso, e que isso lhe dá garantias quando há práticas abusivas pelas operadoras de saúde.

“O que as operadoras têm de garantir de forma geral, mas pensando sobretudo em quem tem mais de 60 anos, é uma diversificação nos canais de atendimento”, resume Marina. De acordo com ela, é importante que a operadora de plano de saúde oferte, por exemplo, a opção de atendimento presencial ou linhas telefônicas com possibilidade de conversar com um funcionário, e não com um robô. Também é interessante que o beneficiário consiga escrever a sua demanda em uma plataforma que não seja totalmente robotizada.

A representante do Idec ainda salienta que todos os planos devem deixar à disposição de seus clientes, e de forma clara, o contato do serviço de atendimento ao consumidor (ou SAC) para que, assim, os beneficiários possam ter acesso a esclarecimentos. Aliás, ela lembra que, segundo o Código de Defesa do Consumidor (CDC), é um dever fornecer esse atendimento por meio de um atendente, e não de um robô ou inteligência artificial.

“Se a operadora não der uma resposta satisfatória ou insistir na má conduta em outros momentos, o consumidor pode fazer uma reclamação em um órgão de defesa do consumidor, como o Procon ou consumidor.gov, que é uma plataforma online. No caso de qualquer dificuldade de atendimento ou negativa de cobertura por causa de uma questão tecnológica forçada pela operadora, ele deve fazer uma reclamação na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)”, orienta a advogada.

Exclusão digital 72% dos brasileiros acima de 60 anos de idade nunca acessaram um aplicativo, aponta pesquisa do Sesc

EMPRESAS. O Estadão entrou em contato com as operadoras citadas na reportagem e não recebeu resposta do plano de saúde exclusivo para pessoas acima de 50 anos. Em nota, a Pessoal Saúde confirmou que os seus clientes têm a opção de agendamento remoto via aplicativo e informou a possibilidade de realizar esse tipo de atendimento presencialmente nas unidades nos municípios de Mauá e de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

O Estado de S. Paulo

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