O que as regiões onde os centenários vivem nos ensinam

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A receita para chegar aos 100 anos passa menos pela genética do que se pensa e mais por hábitos e por qualidade de vida; e pode também ser replicada no Brasil

 

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A costa-riquenha Cecília Gutierrez-Pissaro, de 97 anos, ainda trabalha: ela habita uma ‘blue zone’, nome dado a 5 regiões do planeta onde pesquisadores observaram que as pessoas vivem mais do que a média, e com saúde. Segredo não tem a ver só com genética.

A grega Athina Mazari, de 65 anos, nunca pensou que as receitas feitas em sua modesta cozinha rodariam o mundo. Só se deu conta de que os pratos que aprendeu a preparar ainda menina faziam sucesso quando um casal de turistas poloneses apareceu em sua porta, com uma cópia do livro Blue Zones Kitchen: 100 Recipes to Live to 100 (Cozinha das Zonas Azuis: 100 Receitas para Viver até os 100, em tradução livre, ainda não disponível no Brasil), para que ela autografasse. O livro é de autoria do pesquisador e explorador Dan Buettner, um dos descobridores das blue zones, e o capítulo da Grécia trazia receitas de Athina.

Blue zones foi o nome dado a cinco regiões do planeta onde pesquisadores observaram que as pessoas vivem mais do que a média – e com saúde.

Nesses locais, não é incomum encontrar centenários cuidando do jardim, cavalgando, cozinhando ou trabalhando. Buettner, em conjunto com pesquisadores, listou como blue zones as seguintes localidades: Nicoya, na Costa Rica; Loma Linda, nos Estados Unidos; Okinawa, no Japão; Icária, na Grécia; e Sardenha, na Itália.

A alimentação é um dos pontos que mais geram curiosidade quando se trata de zonas azuis. Como as populações que vivem nessas regiões comem? Que ingredientes compõem suas refeições? É possível reproduzir essa dieta não estando numa blue zone? Visitei essas regiões em uma expedição de dois meses para buscar entender esse e outros pilares do envelhecimento saudável – além da dieta e atividade física, são tratados como pontos fundamentais ter um propósito de vida e manter bons relacionamentos.

“Antes se falava muito em atividade física, mas as pesquisas atuais mostram que você pode fazer atividade física e continuar sendo sedentário”

Marcel Hiratsuka

Médico assistente do serviço de geriatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

COMIDA DE VERDADE. As receitas que Athina prepara para sua família – e que são as mesmas que aparecem no best seller – dão algumas pistas: muitos grãos, verduras, legumes e ervas, colhidos da própria horta. Azeitonas, que ela mesma prepara. Queijo, produzido com leite das próprias cabras. Pão, feito em casa. A carne, geralmente frango ou peixe, aparece no cardápio apenas uma vez por semana. O vinho que acompanha as refeições, sempre caseiro. “Nada falta na minha casa. As únicas coisas que compro são arroz e spaghetti”, diz. O que Athina descreve é o que se conhece popularmente como dieta mediterrânea.

Essa mesma alimentação pode ser observada na Sardenha, outra blue zone localizada no Mar Mediterrâneo. Segundo o pesquisador e médico Gianni Pes, que identificou a zona azul italiana, a dieta na região não foi sempre a mesma. Houve modificações qualitativas e quantitativas da dieta depois da Segunda Guerra Mundial, como o maior consumo de legumes e frutas. “O cultivo de árvores frutíferas nessas áreas surgiu há pouco tempo. Antes disso, a população comia sobretudo os produtos da atividade pastoril: laticínios, queijo, leite e também carne, embora raramente. Durante a transição alimentar, no entanto, o consumo de leguminosas e certos vegetais aumentou. Portanto, hoje a dieta da zona azul da Sardenha assume as características da dieta mediterrânea típica”, completa.

A ênfase em vegetais, legumes e grãos também pode ser observada nas outras blue zones, mas isso não quer dizer que não haja particularidades regionais. Enquanto na Península de Nicoya, na Costa Rica, o alimento básico é o milho, em Okinawa, no Japão, quem ocupa esse espaço é a batata doce. E na cidade de Loma Linda, na Califórnia, EUA, cereais integrais estão no centro da alimentação. É comum os residentes dessas regiões culti

varem os alimentos em suas próprias hortas e jardins – com exceção de Loma Linda, que é uma blue zone urbana.

Esse destaque a uma dieta baseada em vegetais não quer dizer que a alimentação nas blue zones seja vegetariana, ou mesmo vegana, como muitos acreditam. Todos os especialistas entrevistados ressaltaram o fato de as populações nessas regiões consumirem carne, ainda que em quantidades bem moderadas.

Marcel Hiratsuka, médico assistente do serviço de geriatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), afirma que não é preciso viver numa blue zone para ter uma alimentação que favoreça a longevidade. “A dieta do Mediterrâneo é caracterizada por verduras frescas, ervas, peixes, castanhas e azeite. No Brasil, temos bom acesso a verduras e frutas o ano todo, a preços razoáveis. O azeite e a castanha são alimentos caros para nossa realidade, mas suas gorduras boas podem ser encontradas em peixes como tainha, sardinha e cavalinha”, diz.

Uma das dificuldades de se reproduzir no Brasil a alimentação das blue zones é o fato de os produtos serem orgânicos nessas regiões. “Não há políticas públicas no Brasil para que orgânicos sejam oferecidos em escala populacional. E eles são muito mais caros”, pontua. “Mas uma possibilidade seria investir em hortas comunitárias, porque há espaços públicos no Brasil em que é possível produzir para a comunidade. No Japão, por exemplo, onde há restrição de espaço, eles usam espaços mínimos para plantar para bairro, região.”

SEMPRE EM MOVIMENTO. Nada de passar horas na academia. Nas blue zones, o movimento faz parte da rotina. É o caso de Cecília Gutierrez-Pissaro, de 97 anos. Ela passou a vida toda em Arado, uma área rural de difícil acesso em Nicoya, na Costa Rica. Sua casa fica no topo de uma montanha e para chegar até lá é preciso atravessar um rio e subir uma ladeira íngreme. Quando jovem, gostava de frequentar os bailes e, dependendo da altura do rio, cruzava a cavalo ou a pé.

Doña Chila, como é conhecida, teve uma vida inteira de movimento. Conta que sempre trabalhou no campo, plantando, colhendo, cuidando dos outros camponeses. Também fazia biscoitos e tamales para vender, atividade que mantém até hoje. “É preciso trabalhar. Dizem que o trabalho mata, mas olhem para mim. Trabalhei a vida toda e continuo aqui, lutando”, diz.

O italiano Attilio Stochino também dá provas dos benefícios do movimento na rotina. Passou boa parte de sua vida trabalhando como pastor de ovelhas, portanto, caminhando por horas e horas nas montanhas da região central da Sardenha, até se mudar para a cidade para trabalhar como padeiro. Aos 100 anos, sua forma física é boa o suficiente para usar a bicicleta e o elíptico que tem em casa. Dá cerca de 15 pedaladas em cada, quatro vezes ao dia. Ao final, senta-se no braço do sofá, “porque consigo me levantar mais facilmente dessa altura”, diz ele.

Um estudo conduzido por pesquisadores franceses observou situações semelhantes na blue zone de Icária, na Grécia. A pesquisa analisou o estilo de vida de 71 pessoas com mais de 90 anos, avaliando aspectos como alimentação, contato social e espiritualidade. No quesito atividade física, os achados indicaram que os idosos participantes – principalmente os homens – apresentavam um nível “muito bom” de atividade física, especialmente em função do trabalho com agricultura e o terreno montanhoso e irregular da ilha.

Ser fisicamente ativo, portanto, é comprovadamente um fator que contribui para a longevidade. No entanto, Hiratsuka, do HCFM-USP, afirma que as discussões sobre o tema se ampliaram. “Antes se falava muito em atividade física, mas as pesquisas atuais mostram que você pode fazer atividade física e continuar sendo sedentário. Como? Você vai à academia todos os dias por uma hora, faz musculação, esteira, exercícios de equilíbrio e flexibilidade, mas passa as outras 12 horas do dia sentado. Esse comportamento sedentário tem um impacto negativo na nossa saúde, independentemente de fazermos atividades físicas ou não. Por isso, hoje as recomendações são não apenas de prática de atividade física, mas também de combate ao comportamento sedentário. Todo movimento conta”, destaca.

Estudos mostram que a genética tem um papel considerado pequeno quando o assunto é longevidade – apenas de 10% a 20% podem ser atribuídos a ela. O restante, enfatizam os especialistas, são resultado de hábitos e estilo de vida. “A genética tem um papel relevante, mas a nossa forma de viver é a maior composição para se ter sucesso no envelhecimento, para se viver bastante e com qualidade”, diz Hiratsuka. •

O Estado de S. Paulo

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