Petit Trianon

Autor(a):
Ilustracão de Norman Rockwell (EUA 1894-1978)

…Olha que coisa mais linda mais cheia de graça…

Agora, com o pé ainda na estrada, o rock star rouquenho dá lugar à voz suave e sedutora de Astrud e ao saxofone melodioso de Stan Getz, a música ideal para a esticada rumo ao Rio. O coração bate forte, inesperados pensamentos da meninice continuam vindo à minha cabeça…

Tall and tan and young and lovely

The girl from Ipanema goes walking…

Devaneio… reminiscências do 61, da Farani a Fernando Ferrari. Lembro-me do Jornal que sai de vez em quando, a minha iniciação à futura carreira. Era uma gazeta manuscrita em laudas jornalísticas, especializada em Esportes, principalmente futebol, sutilmente tendenciosa a favor do Fluminense Football Club.  Cobria desde os treinos até os grandes jogos do time tantas vezes campeão. Tinha uma equipe enxuta; eu era o Publisher, editor-executivo, editorialista, repórter, diagramador…, meu irmão Luiz Fernando, o fotógrafo. Cortava com afinco e competência imagens de jornais e revistas para ilustrar as reportagens, embora, às vezes, fugisse da redação, situada no 406 do 61, para jogar bola. Contávamos também, esporadicamente, com a colaboração eventual de nossa prima Maria Lucia, a colunista social, que se destacou com uma entrevista exclusiva da vovó Clarisse, na qual nossa avó revelou que o prato favorito dela era “bife com fritas”. Vovó, uma precoce viúva, morou conosco na Farani por 16 anos. Era uma pessoa muito culta – exímia pianista e organista; lia e relia no original os grandes romances franceses (foi educada em casa na língua de Flaubert, Balzac e Victor Hugo). E ainda tinha tempo e talento para fazer vestidos e camisas para os 12 netos e netas, costurando numa Singer portátil.

No som, a combinação perfeita de voz e sax, inebriam o interior do Audi…

This girl from Ipanema [as far as I am concerned she could be from Botafogo or Jardim Botânico] goes walking

And when she passes

Each one goes, Ah!

Saía de vez em quando porque, pudera, as atrações do 61 na volta das aulas eram irresistíveis. Depois dos deveres de casa, se não estivesse chovendo, deixávamos a faina bissexta na redação, descíamos para a área (hoje chamada idiotamente de play) para um racha com os garotos e trocar olhares gulosos com as graças em flor…

And when she passes, he smiles

But she doesn’t see

How can he tell her he loves her

Tínhamos um leitor: nosso pai, o médico e jornalista Fernando Martin Seidl. Era um profundo conhecedor dos preceitos hipocráticos e, sempre bem-informado, escrevia com fluência, leveza e humor.

O assinante coruja via no idealizador de tão incomum folha um futuro escrevedor. Certo dia, me disse, entusiasmado:

– Tenho aqui no 61 dois grandes amigos baluartes das Letras.

– Quem são eles? – perguntei curioso.

– João Cabral de Melo Neto, autor do poema épico “Vida e Morte Severina”, e o poeta e jornalista Lêdo Ivo [Melo Neto e a sua amada Stella Maria deram Rodrigo, Inez, Luiz, Isabel e João para a primeira geração infanto-juvenil da Farani; Lêdo Ivo e Maria Leda, Patrícia, Gonçalo e Maria da Graça].

Papai continuou:

– João Cabral e Lêdo Ivo são nomes certos para todos os prêmios de poesia e literatura.

Prêmios de literatura os houve, os há e os haverá. O mais nobre é o Nobel. Importantíssimos são o Pulitzer (EUA), o Astúrias (Espanha) e o Goncourt (França), entre outros.

No Brasil, o mais cobiçado é o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro [João Cabral de Melo Neto foi laureado em 1967 e em 1993, Lêdo Ivo, em 1973].

Todos muito prestigiosos, sem dúvida. Se um dia vou chegar lá?  Não sei, tudo é possível…, mas da primeira vez ninguém esquece… Ainda, pré-adolescente, nos anos 60, fui agraciado com o singelo I Prêmio de Redação Padre Antonio Malheiros, no Colégio Santo Antonio Maria Zaccaria, no Rio de Janeiro, dirigido por clérigos Barnabitas.

Peço licença a você leitor, leitora, para pôr no ar o texto vencedor:

Eu e os livros

Meus pensamentos voltam-se a alguns anos atrás e me vejo sentado no chão do quarto a destroçar implacavelmente os livrinhos de figuras que ganhava. Este foi talvez meu primeiro contato com os livros. O menino levado foi crescendo e as relações com os livros, mudando. As figuras eram apreciadas e não picotadas. Depois a cartilha, as primeiras letras e o prazer maravilhoso de saber ler. Eu entrava, então, pouco a pouco, num mundo novo. Mundo de palavras, de ideias, de pensamentos que me fascinavam e encantavam.

Passam os anos, e com eles muitos livros desfilaram ante meus olhos. Didáticos, recreativos, tristes ou alegres, foram eles os companheiros de horas mais diversas.

Vésperas de exames, os livros e eu somos inseparáveis. Eles que, às vezes ficam um pouquinho esquecidos, tornam-se imprescindíveis. São os amigos mais leais que garantem a aprovação no fim do ano.

Vários livros me impressionaram bastante nos diversos estágios da minha vida e não poderia sequer enumerá-los aqui. Posso dizer apenas que foram muitos e que sempre me influenciaram positivamente.

Os livros são meus companheiros fiéis e o serão por toda minha vida, tirando dúvidas, recreando, esclarecendo e dissipando as tenebrosas nuvens do não saber…

O regalo foi uma visita com guia especializado às obras raras da feérica Biblioteca Nacional, a mais antiga da América Latina, fundada em 29 de outubro de 1810, com o acervo da Real Biblioteca Portuguesa, em razão da transferência da coroa lusitana para o Brasil, na esteira das guerras napoleônicas. Por isso, o Dia do Livro é comemorado anualmente em 29 de outubro.

Ouço, privilegiadamente, agora um solo do saxofonista saudado como The Sound…

Ao voltarmos para o 61, meu pai, nossa amadíssima Maria Stella e meu irmão, após a premiação, nos encontramos com Lêdo Ivo no saguão dos elevadores. Depois de felicitar o amigo pelo convite de Washington para palestras em universidades norte-americanas, meu pai, apontando para mim, com olhares de uma corujice sem precedentes, disse ao amigo jornalista, poeta, romancista, ensaísta, cronista, contista:

– Ele acabou de receber um prêmio de literatura (meu pai exagerava – qual, não? – quando se tratava de exaltar feitos de seus “marrecos”, “o branco e o preto”).

– Então, sem conter a risada amiga, e generoso com o “amigo babão”, não deixando por menos, disse:

– Então, o Edifício Júlio de Barros Barreto, o nosso 61 seja da Farani ou da Fernando Ferrari, já é uma filial da Academia…

[João Cabral de Melo Neto tomou posse na cadeira 37, antes ocupada por Assis Chateaubriand, em 6 de maio de 1969; Lêdo Ivo, a número 10, em 7 de abril de 1987, em sucessão a Origenes Lessa].

Chego a Ipanema, as garotas da pele dourada a caminho do mar, vejo, ainda, da janela o Cristo Redentor, o Corcovado, que lindo…

Astrud conclui com delicadeza, graciosamente, a linda canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes

Olha que coisa mais linda

Mais cheia de graça

É ela menina

Que vem e que passa

Num doce balanço, a caminho do mar

Antonio Carlos Seild é jornalista e escritor

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