“A demência do meu pai”

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Como identificar os sinais de demência?

A demência é um conjunto de sintomas que podem ser causados por diferentes doenças, como o mal de Alzheimer. Ela afeta mais as mulheres do que os homens.

Seus sintomas podem variar e incluem alterações do humor, mudanças de personalidade, confusão, falta de concentração e perda de memória.

Não existem exames para a demência. O que existe é a avaliação cognitiva, normalmente por assistentes de saúde, da memória de longo e de curto prazo, capacidade de comunicação, concentração, capacidade de atenção e consciência de tempo e lugar.

Organizações de apoio oferecem assistência aos parentes e amigos sobre como se preparar para conversas sobre sintomas de demência e a possibilidade de avaliação.

A avaliação é especialmente importante – mesmo que, atualmente, não haja cura, o diagnóstico precoce traz diversos benefícios.

Ele permite que as pessoas criem um ambiente seguro de apoio, planejem os cuidados necessários e gerenciem certos sintomas.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.

 

Mãos de uma pessoa idosa segurando as mãos de alguém mais jovem

Pesquisas apontam novas  formas de assistência às pessoas com demência

A demência é uma destruidora de mundos.

Ela apaga, altera e rouba as lembranças. Ela causa falta de concentração, confusão e mudanças de humor.

Faz com que rostos familiares e ações do dia a dia que antes eram simples se tornem quebra-cabeças incompreensíveis.

As pessoas que presenciam o declínio mental de um ente querido também são afetadas.

Um estudo chamou os cuidadores informais ou familiares de “segundos pacientes invisíveis”.

Suas experiências variaram de isolamento social, estresse e maiores riscos à saúde até problemas financeiros.

E, se o ente querido for seu pai ou sua mãe, a demência também refaz e reverte uma das conexões mais importantes das nossas vidas.

Minha nova relação entre pai e filha começou no dia de Natal de 2019.

Uma árvore de Natal artificial superlotada de enfeites ficava no canto da sala.

Meu marido usava um casaco berrante. Nosso filho, em idade escolar, jogava cartas e disfarçava um bocejo.

O avô dele – meu pai – servia-se do tradicional peru da ceia. Até ali, tudo muito natalino.

A única diferença, desta vez, era o local: o Hospital Lister em Stevenage, uma cidade ao norte de Londres.

Meu velho pai tinha então 87 anos de idade. Ele havia sido internado 24 horas antes, doente, confuso e vomitando o que pareciam ser grãos de café pretos.

Como ele brincou mais tarde com as enfermeiras, o mal-estar não foi causado pela minha comida. Na verdade, os exames revelaram uma causa que nos assombrou a todos: overdose de analgésicos.

Mão idosa montando quebra-cabeça
O sintoma mais frequente da demência é a perda da memória, que ocorre quando as células cerebrais param de trabalhar e de se comunicar corretamente

Fiquei ainda mais surpresa com a pergunta feita pelo médico: “Há quanto tempo o seu pai sofre de demência?”

“Até onde sei”, respondi, “ele não tem demência”.

Cerca de 57 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de demência. Uma equipe internacional de pesquisadores prevê que este número triplique para 153 milhões de casos até 2050, devido ao envelhecimento cada vez maior da população mundial.

A demência também atinge mais mulheres do que homens, de forma desproporcional. E não é uma doença, como normalmente se acredita.

“A demência é um termo guarda-chuva para uma série de condições progressivas que afetam o cérebro”, segundo Caroline Scates, vice-diretora de desenvolvimento de enfermeiras especializadas da organização Dementia UK.

Essas mudanças no cérebro são causadas por diversas doenças.

“Existem mais de 200 tipos diferentes de demência”, afirma Scates. “As mais comuns são mal de Alzheimer, demência vascular, demência com corpos de Lewy, demência frontotemporal e demência mista – e todas elas podem estar presentes de formas variadas.”

A demência com corpos de Lewy, por exemplo, é causada por depósitos de proteínas no interior das células do cérebro, os chamados corpos de Lewy. Seus sintomas incluem alucinações, sonolência e desmaios.

Mas o primeiro sintoma de demência normalmente observado pelas pessoas e pelos seus entes queridos é a perda de memória. Ela é causada pelos danos cerebrais.

Quando as células do cérebro param de funcionar adequadamente, elas afetam os nossos pensamentos, a memória e a capacidade de comunicação.

“Quando alguém sofre de demência, os médicos não têm nada a fazer para evitar a progressão da doença”, explica Rosa Sancho, chefe de pesquisa da organização Alzheimer’s Research UK.

“As pessoas podem tomar remédios, mas eles só irão aliviar os sintomas temporariamente.Como as doenças que causam a demência são atualmente incuráveis, as únicas soluções no momento são gerenciar os sintomas, fornecer um ambiente que suporte e estimule as funções cerebrais remanescentes e tomar medidas para reduzir o risco de desenvolver a demência antes que ela apareça.

“A demência não é diagnosticada apenas para uma pessoa”, segundo Scates. “O diagnóstico é fornecido para o cônjuge, parceiro, filho, família estendida e amigos, de forma que o impacto atinge toda a família. Cada diagnóstico que é feito muda a vida de diversas pessoas.” Para quem cuida de pessoas com demência, a perda de memória pode transformar a vida diária em uma série infindável de mistérios esperando solução.

No caso do meu pai, havia o mistério do motivo que o levou a ingerir uma overdose de analgésicos. Até que eu lembrei que, alguns dias antes, ele estava mancando quando fui buscá-lo na estação do trem.

O que aconteceu é que ele havia quebrado o pé quando escorregou do meio-fio várias semanas antes.

“Eles não engessaram?”, perguntei. “Sim, mas estava me dando nos nervos”, respondeu ele. “Estou bem.”

Para muitos adultos que lidam com um pai ou parceiro esquecido, a aceitação pode parecer algo sensível e respeitoso. Mas ignorar os primeiros sinais tornou-se um grande problema de saúde em todo o mundo. A demência é subdiagnosticada.

Uma pesquisa de 2017 concluiu que, globalmente, o índice de demência não diagnosticada é de 62%”, afirma a professora Elizabeth Ford, do Departamento de Cuidados Primários e Saúde Pública da Escola de Medicina de Brighton e Sussex.

“Ou seja, apenas 38% dos casos em todo o mundo estão sendo diagnosticados.”

Ford atribui a inexistência de cura ou tratamento que altere a condição como uma das principais razões que levam as pessoas a não buscar um parecer médico, além do fato de ser um diagnóstico “sombrio e altamente estigmatizado”.

“Metade dos adultos britânicos afirma que esta é a condição que eles mais receiam”, segundo ela, “e os médicos tendem a esperar o máximo possível antes de encaminhar [os pacientes] para o diagnóstico. Eles pisam com cuidado para ter certeza que o paciente está pronto para a longa bateria de testes e para ouvir o resultado, pois nem todo paciente quer ouvir se tem demência.”

RISCOS PARA A DEMÊNCIA

Um novo estudo comportamental feito por pesquisadores chineses concluiu que existe uma relação entre o tempo dedicado a tarefas domésticas, exercícios e visitas sociais e a redução do risco de demência. Também se acredita que estilos de vida saudáveis, especialmente entre os idosos, reduzam o risco de desenvolver demência.

Se você conhece alguém com demência, certamente ele fez você reavaliar o seu próprio estilo de vida e suas perspectivas para quando ficar mais idoso.

As causas podem ser variadas e complexas e não há nada que garanta a proteção, mas existem medidas que reduzem o seu risco. Elas incluem ter vida social ativa, cuidar de problemas de audição, não fumar, não consumir álcool em excesso e ser ativo física e mentalmente.

Pode ser difícil aceitar que o seu pai ou mãe, que antes era ativo, saudável e sociável – como o meu – seja afetado.

Por mais que eu agora lamente não ter sido mais mandona quando ele sempre se recusava a cuidar dos seus problemas de audição, um pensamento reconfortante é saber que, talvez, o seu estilo de vida tenha ajudado a manter o cérebro dele em boa saúde por mais tempo, mesmo que não tenha eliminado a ameaça.

Até agora, meu pai continua a me reconhecer, ainda que as palavras surjam lentamente, como bolhas de sabão que sobem e se dissipam rapidamente no ar, enquanto ele enfrenta dificuldades para manter sua linha de pensamento.

Mas estou ciente de que, um dia, meu rosto irá se tornar o de uma estranha. E seus gentis cuidadores já são sua família alternativa.

Em uma visita recente, eu o encontrei em uma área comum ouvindo educadamente uma cantoria nostálgica, provavelmente destinada a despertar antigas lembranças. Uma das músicas era uma canção britânica popular do tempo da guerra, talvez desgastada, chamada “We’ll Meet Again” (“Nós nos encontraremos de novo”).

Quando me viu, meu pai imediatamente se levantou, radiante.

Andando em direção ao seu quarto, sugeri que tocássemos um dos seus CDs de ópera ou de música clássica. “Qualquer coisa”, respondeu ele com um sorriso maroto, “desde que não seja ‘We’ll Meet Again’.”

Foi então que, por um breve e maravilhoso momento, o pai que eu conheci havia voltado e eu, rapidamente, era sua filha mais uma vez.

Compacto da BBCNews Brasil

 

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