O privilégio de cuidar da saúde mental

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Para médico que elaborou recomendações contra depressão, Brasil negligencia o problema Psiquiatra e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul investiga os desafios da saúde mental

Christian Kieling Pesquisador da UFRGS

Apesar de afetar milhares de pessoas todo ano, com impactos na economia, na trajetória escolar e até na alta de mortes precoces, a depressão ainda é negligenciada. No Brasil, a maioria não tem acesso a tratamentos adequados, e perdura a ideia de que só é possível cuidar da saúde mental quando outros aspectos da vida já estão resolvidos. “Os cuidados com a saúde mental são concebidos como um privilégio”, diz Christian Kieling, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Com um time de especialistas de 11 países, o psiquiatra publicou na revista científica The Lancet recomendações para enfrentar os problemas de diagnóstico, tratamento e prevenção da depressão. A mensagem é de que é preciso unir toda sociedade contra a crise global que a doença representa.

No Brasil, estratégias como capacitar agentes comunitários para quadros leves, fortalecer a atenção à saúde mental no SUS e foco em adolescentes e jovens podem ser soluções. A pandemia criou a tempestade perfeita para o aumento de transtornos, mas escancarou a urgência do tema.

O relatório na Lancet diz que metade das pessoas com depressão em países ricos não é sequer diagnosticada. A taxa é maior em países de baixa e média renda. Quais as consequências?

Tem uma pesquisa mundial que avaliava pessoas que preenchiam critérios diagnósticos para depressão e depois perguntava se ela teve contato com serviços de saúde para tratar os sintomas. Os dados nos mostram que, se considerar países ricos, quase 50% não tinham contato com os serviços e, nos de baixa e média renda (o Brasil incluído), 70%. Os dados ficam piores ainda se avaliar o que aconteceu nesse contato. O número de pessoas que de fato recebem tratamento adequado cai: mais de 90% em países pobres não recebem tratamento combinado de psicoterapia e medicação para “Infelizmente fazemos isso em relação à saúde mental no nosso País, de considerá-la um luxo, como se só quem está com tudo resolvido na vida pudesse cuidar da saúde mental.”

Pode haver mais suicídios e quadros agravados?

Com certeza. Temos uma série de estudos mostrando consequências negativas da depressão. Entre crianças e adolescentes, desfechos escolares negativos, como repetência, evasão. Também há desfechos ocupacionais, diminuição da produtividade e até conflitos conjugais. O desfecho mais grave, infelizmente, é a morte prematura: uma pessoa com depressão e que também tenha tuberculose, hipertensão ou diabete pode não aderir tanto ao tratamento da condição física por estar em estado depressivo. No limite, tem o suicídio, algo ainda muito forte no mundo: 800 mil mortes por suicídio no mundo todo ano.

Se há terapias disponíveis, o que está por trás da dificuldade de usar na prática?

Não é só com psiquiatra ou psicólogo que resolveremos. Temos de unir a sociedade para conscientizar sobre o impacto da depressão e a necessidade de ação. Há barreiras ligadas ao estigma e até ao que entendemos por depressão; e ligadas a investimentos em cuidados em saúde mental, que muitas vezes não serão feitos só em ambientes de saúde. Precisamos investir no SUS. Vemos a vacinação funcionar bem, redução de mortalidade infantil, programas para diabete, hipertensão, mas para a saúde mental ainda falta. Os Caps (Centros de Atenção Psicossocial)

têm de resolver um problema maior do que conseguem. É preciso política pública focada na saúde mental, reconhecendo o momento em que os problemas surgem e são mais relevantes: o fim da adolescência e início da idade adulta. É uma parcela da população que não frequenta o sistema de saúde.

A saúde mental é negligenciada no País em detrimento de outros problemas, mais ligados à saúde física?

Sim, e essa visão está equivocada porque parte da ideia de que saúde mental e física são separadas. O indivíduo não é uma doença cardiovascular ou uma mental. Há impacto de uma coisa na outra. Quem está deprimido e tem pressão alta pode até se desengajar do tratamento para pressão e não tomar remédios. A magnitude da saúde mental parece ser subestimada. Os cuidados com a saúde mental são concebidos como privilégio e não direito humano básico, na medida em que só a pessoa que tem condição de pagar tratamento particular tem acesso. Imagina se, na pandemia, tivéssemos visão parecida sobre vacina? Infelizmente fazemos isso sobre a saúde mental, de considerála luxo, como se só quem está com tudo resolvido na vida pudesse cuidar da saúde mental.

No Brasil, como você vê essa questão do estigma?

O estigma ainda existe, é grande. Mas, se tem algum aspecto positivo da pandemia – se é que dá para falar nesses termos – é que ela nos mostrou que todos nós temos a saúde mental e ela pode ser afetada por eventos externos. Dificilmente alguém pode dizer que não teve sua saúde mental afetada em algum nível nesses últimos dois anos. E isso faz com que a saúde mental entre agora mais pela porta da frente no debate sobre saúde. Dou aula a estudantes de Medicina e vejo os alunos interessados em aprender, mesmo quem não vai seguir na Psiquiatra, porque eles veem a relevância para as próprias vidas e para o cuidado de seus pacientes.

Faltam profissionais especializados no Brasil?

Se pensar que 5% dos adultos no Brasil têm ou tiveram no último ano um episódio depressivo, são 10 milhões. Não há profissional de saúde mental suficiente. Evidências de vários países, na África e Ásia principalmente, mostram que posso treinar profissionais não especialistas para implementar estratégias psicossociais e psicoterápicas eficazes para depressão, principalmente em quadros leves a moderados. Poderíamos pensar aqui em treinar agentes comunitários de saúde, por exemplo, sob supervisão do médico da UBS (Unidade Básica de Saúde), de um profissional de saúde mental.

O Estado de São Paulo

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