Justiça para o envelhecimento brasileiro

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Discutir formas de aprimorar o tratamento de litígios causados pelos diferentes tipos de violência cometida contra idosos mobilizou as reflexões da segunda edição do ciclo de debates “O Envelhecimento da População no Brasil – Uma Reflexão sobre o Papel do Judiciário na Efetivação dos Direitos das Pessoas Idosas”, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nesta quinta-feira (25/8). O encontro promovido pela Comissão Permanente de Políticas Sociais e de Desenvolvimento do Cidadão do CNJ tratou das implicações, no Sistema de Justiça e na sociedade, do envelhecimento da população brasileira, que apresentou tendência de aumento na última década.

De acordo com o presidente da Comissão, conselheiro Mário Goulart Maia, o crescimento da população nessa faixa etária acompanha o aumento das violências institucionais ou familiares contra as pessoas idosas. O grupo com 60 anos ou mais cresceu praticamente 40% entre 2012 e 2021, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número saltou de 22,3 milhões, no início da série histórica, para representar 31,2 milhões de brasileiros no ano passado, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Características Gerais dos Moradores, divulgada no fim de julho.

O conselheiro Mário Goulart Maia classificou como institucionais as violências cometidas “por omissão ou deficiência de gestão das políticas públicas que deveriam promover a efetiva melhoria da qualidade de vida dos nossos idosos”. Segundo Maia, “as formas de violências familiares são abusos de diferentes naturezas, desde psicológicas, até as sexuais e financeiras”. O encontro promovido pelo CNJ propôs-se a pensar futuras ações ou projetos para que sejam assegurados aos idosos direitos já normatizados.

Política judiciária

“Anunciamos que encaminhamos à Secretaria Geral do CNJ, para apreciação da Presidência do Conselho, a proposta de criação de um Grupo de Trabalho com especialistas destinado à realização de estudos e à elaboração de propostas para formular um ato normativo que institua a Política Nacional Judiciária de Atenção à Pessoa Idosa e suas Intersseccionalidades”, afirmou o conselheiro, na abertura do encontro.

De acordo com a juíza coordenadora da Central Judicial do Idoso do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), Monize Marques, a experiência de 10 anos à frente do serviço de atendimento a demandas da população idosa a convenceu de que uma nova postura do Poder Judiciário é necessária para fazer frente à chamada transição demográfica, um processo em curso em países como o Brasil em que idosos e jovens passam a se equivaler em relação à população nacional. Em 2021, a Central realizou quase 18 mil atendimentos, sendo 846 no núcleo de mediação. Desses, foi possível alcançar 68% de acordos.

“Com a evolução da complexidade das relações, percebemos que a melhor maneira de transferir Justiça é atuando de forma proativa, trazendo reflexões, encurtando caminhos, ampliando nossas potencialidades, muito mais que resolvendo processos”, afirmou a magistrada, que se formou mestre em gerontologia. A Central Judicial do Idoso presta serviços àqueles que buscam a Justiça por ter seus direitos ameaçados ou violados. Com profissionais de diferentes áreas e uma abordagem conciliatória que busca soluções por meio do diálogo e do trabalho em rede com outros parceiros, do setor público ou não, a Central aplica o Estatuto do Idoso. Os 80% de demandas que chegam à unidade e acabam não sendo judicializados são a prova, de acordo com a juíza, de que o papel da Justiça nesses casos não é necessariamente o de dar a resposta tradicional à litigância, que leva tempo e consome recursos financeiros.

De acordo com o médico-geriatra e perito da Polícia Civil do DF Otávio Castello, a violência contra idosos tem muitas facetas, independentemente de classe social e, por isso, exige mais atenção do Poder Judiciário. “Muitas vezes, o juiz precisa de um gerontólogo para identificar o tipo de violência cometida. Somos poucos e a demanda é muita. Há casos em que conceitos como violências e negligência podem facilmente ser confundidos. Não estamos preparados para enfrentar essas questões – nem no Judiciário nem nas nossas casas. Vamos nos preparar juntos.”

Crise

Um dos fatores que agravam a crise da velhice é a vulnerabilidade dos idosos devido ao mal de Alzheimer e a outros tipos de demências. Segundo o especialista, essas doenças são predominantes na fase madura da vida. “Pior, é irreversível. A pessoa vai desaprender tudo que aprendeu e precisará ser cuidada”, afirmou. De acordo com o especialista, o mal acomete 2% da população aos 60 anos de idade, 30% dos idosos com 83 anos e 50% de quem completou 90 anos, além de atingir 75% dos internos de casas de idosos.

A defensora pública do Distrito Federal Bianca Cobucci exemplificou as situações-limite com que se depara no exercício da sua função. Ela contou a história da dona Josefa, uma idosa que tem um filho de 55 anos com deficiência intelectual e vive em situação de risco, em extrema vulnerabilidade. Em casa, a idosa vivia com o filho, montanhas de lixo e animais, como ratos, escorpiões, baratas, pombos e uma fiação elétrica que ameaçava sua vida. “Ela dizia que só iria para uma Instituição de Longa Permanência se pudesse levar o filho com ela. Infelizmente, a decisão da Justiça determinou que os dois fossem encaminhados para duas instituições diferentes. Será que essa idosa e filho vão ser condenados a viver separados, sem nunca mais se encontrarem? Precisamos pensar sobre esses desafios.”

Testemunho

Quirino de Oliveira, 77 anos, vive na Instituição de Longa Permanência Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes, em Brasília, que é mantida por uma organização filantrópica e administrada por voluntários. Internado há 12 anos, Oliveira recebe visitas das filhas, ao contrário de muitos de seus colegas que não têm mais vínculos familiares.

Nenhum deles têm condições materiais para se sustentar e vivem do trabalho voluntário e doações. “Se eu não tivesse o lar, já tinha morrido. Estava com infecção urinária e uma ferida no pé que não melhorava. Quando fui para lá (a instituição), me cuidaram e sarou a ferida. Eles cuidam de todos, tanto faz se é de dia ou de noite. Temos médico duas vezes por semana, mas o custo é muito alto, e a parte do governo insuficiente”, afirmou, ao lado da psicóloga voluntária do Lar, Priscila Fernandes.

O coordenador do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia da Universidade Católica de Brasília, professor Vicente Paulo Alves, ressaltou a relevância, no atual momento, do debate sobre as consequências do envelhecimento da população, que ocorre em função das mudanças culturais que causam a queda de natalidade e dos avanços da medicina e da farmácia responsáveis pela queda das taxas de mortalidade.

Embora destaque a contribuição do Estatuto do Idoso, outros direitos ainda não estão sendo plenamente garantidos, como transporte, saúde, educação, moradia, trabalho, alimentação, assistência e previdência social, além de outros mais subjetivos, como direito a vida, respeito, dignidade, cultura e lazer. “A gente não escolhe envelhecer, é inexorável. Como nenhum de nós quer morrer mais jovem, precisamos garantir que vamos envelhecer com qualidade e dignidade.”

Para o escritor Paulo Borges Júnior, presidente da instituição educacional sem fins lucrativos Total Educação e Cultura, uma crise do sistema produtivo é responsável pela atual problematização da posição dos idosos na sociedade, uma vez que a inversão da pirâmide demográfica compromete o tamanho da base produtiva, o futuro do estado de bem-estar social e o próprio conceito de aposentadoria, tão associado à velhice. “Só sofremos porque o sistema colapsou já que não temos produzido a compensação necessária para o afastamento dos velhos do sistema de produção, propósito original dos estados europeus que criaram a ideia da aposentadoria.”

De acordo com o escritor, a crise é cultural e demanda um reposicionamento do idoso a seu lugar de autoridade na família, na comunidade e na sociedade. Borges advoga uma transformação da cultura a partir da educação das crianças, que privilegia equivocadamente a formação de pessoas produtivas em detrimento da transmissão dos valores e do tratamento das emoções.

“A forma de fazer isso é colocar a pessoa idosa, de forma proativa, no meio da formação cultura, que é a educação, para contar histórias, seus testemunhos. É preciso que o ambiente escolar possa hospedar os velhos e estes possam relatar seus fracassos, a perseverança, desafios, para que nossa formação cultura não seja feita apenas de acertos, expectativas e ilusão. É preciso que os mais novos entendam que os processos orgânicos são enfrentados em família, em comunidade”, afirmou o dirigente da Total Educação e Cultura.

cnj.jus.br

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